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quinta-feira, 27 de junho de 2013

Um jornal inteligente e rebelde


Livro resgata a história do semanário “Movimento”, um dos mais censurados do país e que foi importante na luta contra a ditadura civil-militar

Renato Dias
Especial para o Jornal Opção

Por que os nazistas não merecem anistia? Essa era a manchete da edição nº 154 do semanário “Movi¬mento”. Em campanha por anistia ampla, geral e irrestrita, o jornal defendia a apuração das violações dos direitos humanos ocorridas à época da ditadura civil-militar e a punição dos responsáveis por prisões ilegais, torturas, assassinatos e desaparecimentos políticos. Nada mais atual em tempos de criação da Comissão da Verdade.

O “Movimento” nasceu de uma costela do “Opinião”, o jornal criado em 1972 pelo empresário Fer¬nando Gasparian, amigo de Rubens Paiva, ex-deputado federal morto pela repressão política em 1971. Editado por Raimundo Rodrigues Pereira, chegou às bancas, pela primeira vez, em 7 de julho de 1975. Para ser o jornal dos jornalistas e um veículo de frente política ampla para derrotar a caserna e ajudar a construir a democracia.

A história do surgimento e da morte do veículo é registrada em “Jornal Movimento — Uma reportagem”, Manifesto Editora, de autoria de Carlos Azevedo, com reportagens das jornalistas Marina Amaral e Natalia Viana. Detalhe: um DVD acompanha o livro com as 334 edições digitalizadas do jornal. A obra, que foi patrocinada com recursos da Petrobrás para a sua produção, possui 336 páginas. Fotografias inéditas ilustram os textos.

O “Movimento” vendeu 21 mil exemplares na primeira edição. Ele possuía um programa — de oposição ao regime militar, um jornal popular, democrático, em defesa das liberdades, pela melhoria da qualidade de vida da população, contra a exploração do país por capitais estrangeiros, pela divulgação da cultura popular e para defender os recursos naturais da pátria de chuteiras. O programa teve formulação atribuída ao jornalista Marcos Gomes.

A sede do semanário era em São Paulo, à Rua Virgílio de Carvalho Pinto, 625, Pinheiros, área central da capital. Sociólogo, Chico de Oliveira indicou o “cara” que iria organizar a empresa: Sérgio “Gordo”. Na verdade, Sérgio Motta, que tempos depois seria definido como o trator do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Ele mantinha uma estrutura razoável em sua empresa, a Hidrobrasileira.

O quadro dos colaboradores do jornal era plural, eclético. Além de Chico Buarque no Conselho Editorial, Fernando Pimentel e João Batista dos Mares Guia atuavam na sucursal de Belo Horizonte; Paulo Timm e Antonio Ibanez em Brasília; Emiliano José, Tibério Canuto e Oldack Miranda, em Salvador. Ivan Maurício, Recife. Fátima Murad, Curitiba. Carlos Moissman, Porto Alegre. Santa Maria, os irmãos Adelmo e Tarso Genro.

O jornal era impresso em preto e branco. “Apenas uma corzinha na capa”. Mas uma nova geração de ilustradores e cartunistas surgiu com o projeto: os irmãos Chico e Paulo Caruso, Cássio Loredano, Grilo, Alcy, Luiz Gê, João Zero, Arnaldo, Nilson, Laerte, Joata, Angeli, Glauco. Levados ao veículo com a bênção de Elifas Andreato, que assinava o projeto gráfico do semanário.


Uma guerra constante do semanário “Movimento” era contra a censura. Não custa lembrar: a edição nº 2 teve 14 matérias vetadas, 12 parcialmente cortadas, num total de 72 laudas. Ilustrações não puderam ser publicadas. A capa foi mutilada. Até 8 de junho de 1978, haviam sido vetados pela censura prévia 3.093 artigos na íntegra, 450 mil linhas de textos parcialmente cortados, 3.162 desenhos. Mais de 4,5 milhões de palavras foram vetadas: “Cerca de 40% do conteúdo produzido para as edições semanais do jornal”, relatam Carlos Azevedo, Marina Amaral e Natália Viana. A censura ao “Movimento”, “O São Paulo”, jornal da cúria metropolitana de São Paulo, dirigido por dom Paulo Evaristo Arns, e “Tribuna da Imprensa”, do Rio de Janeiro, comandado por Hélio Fernandes, terminou apenas no mês de junho de 1978.


O “Movimento” sempre operou no vermelho. Com a censura em alta, as vendas entravam em baixa. Era a equação do mercado leitor. O semanário acabou sustentado por acionistas e colaboradores. A democracia interna constituía o diferencial de funcionamento do veículo. Além de garantir a propriedade da empresa “de fato e de direito” aos que nela trabalhavam, a redação mantinha o poder de decisão sobre os seus rumos.

1977: após denunciar o suposto controle editorial oculto de Ensaios Populares, uma seção do jornal, pelo PC do B — na verdade, os textos eram escritos por Duarte Pereira —, e de exigir um jornal operário e socialista, e não de frente, Bernardo Kucinski e a sucursal de Belo Horizonte racham com Raimundo Pereira e fundam o “Em Tempo”, que depois viria a ser o porta-voz da DS, a facção trotskysta Democracia Socialista, ligada a Ernest Mandel.

“Em Tempo” começou ir às bancas em janeiro de 1978. Com Bernardo Kucinski, Chico de Oliveira, Maria Rita Khel, Guido Mantega, Flávio Andrade, Emiliano José, Oldack Miranda. Logo novo racha: Chico de Oliveira e Ricardo Maranhão saem de “Em Tempo” e criam outro jornal — “Amanhã” — que não conseguiu consolidar-se. O racha no “Movimento” ocorre em abril, quando Ernesto Geisel havia lançado o “Pacote de Abril”.

O “Movimento” fazia campanhas. A primeira, por uma Assembleia Nacional Constituinte. Ele demorou a desfraldar a bandeira da anistia. Mas, aos poucos, a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita foi ganhando as páginas do semanário. A edição nº 155 trouxe, como manchete na capa, “Retrato de um torturador: capitão Ubirajara.” Outra reportagem bombástica: como morreu José Porfírio (deputado goiano), líder das revoltas camponesas de Trombas e Formoso.

Orientado por Raimundo Pereira, o “Movimento” apoiou os dissidentes do regime militar: Euler Bentes e cia. Na votação do Colégio Eleitoral — sucessão de Ernesto Geisel —, em 15 de outubro de 1978, João Batista Figueiredo venceu com folga: obteve 355 votos, contra 226 dados ao general Euler Bentes. Já no mês de novembro seguinte, o MDB elege 189 deputados federais. A Arena (Aliança Renovadora Nacional), 231.

O semanário acabou surpreendido pelas greves operárias de 1978 e 1979, viu com desconfiança o surgimento do líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. “Havia muita especulação a respeito de quem era esse cara chamado Lula. Tanto do ponto de vista da direita como da esquerda. Que o Lula era da CIA, que o Lula fez treinamento nos Estados Unidos, que Lula isso... porque o Lula era um enigma (...)”.

“Em 1980, um novo obstáculo surgiu para dificultar o esforço de recuperação (econômica) de ‘Movimento’. Bancas de jornais estavam sendo incendiadas ou ameaçadas. Atentados ocorreram em São Paulo, Londrina, Rio de Janeiro, Goiânia e Salvador.” O “Movimento” dava os suspiros finais. A última edição nº 334 circulou em 23 de novembro de 1981. Com o editorial “Movimento morreu. Viva Movimento!”.

Renato Dias, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.

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